domingo, 16 de junho de 2013

Review - Walkable Cities

Walkable Cities, de Jeff Speck, é um dos livros mais festejados por pessoas que, como eu, defendem uma cidade mais humana, isto é, com mais ênfase em pessoas e menos ênfase em carros. Para quem não conhece o autor, ele é coautor do livro Suburban Nation (sobre o qual pretendo também fazer uma resenha em breve).

Logo que caiu em minhas mãos, tratei de devorar o livro. Meu primeiro sentimento, entretanto, foi de desapontamento. A culpa foi provavelmente minha por esperar do livro algo que ele não se propõe a entregar.

Walkable Cities é um manifesto sobre porque e como criar cidades voltadas para o pedestre. O livro se divide em  duas partes: a primeira justificando porque uma cidade deve ser acolhedora ao pedestre e uma segunda parte propondo 10 passos para atingir esta meta.

Por que Caminhar


A primeira parte do livro é, definitivamente, a mais interessante. Mesmo sendo relativamente conhecidos, os argumentos para usarmos menos carros e mais a caminhada (e meios de transporte de apoio) são bastante contundentes! O autor não diz que carros não são úteis, mas que estamos usando esta ferramenta da forma inadequada.

Podemos listar os pontos defendidos pelo autor como justificativa para uma mudança de paradigma:

  1. Epidemia de Obesidade: Grande parte dos usuários de carro caminha apenas da porta da sua casa até a garagem, dirigem até o seu destino e caminha da garagem do destino até o local propriamente dito. Este sedentarismo é uma das causas para o aumento da obesidade em todo o mundo, uma epidemia de consequências sérias para a saúde e gastos públicos.
  2. Poluição: Embora antigamente a maior parte da poluição da cidade viesse de indústrias, isto não é mais verdade. Hoje, a maior parte provém da queima de combustíveis fósseis nos carros. O autor cita o aumento de casos de asma como uma das consequências diretas.
  3. Violência no Trânsito: O autor apresenta dados que mostram como cidades mais acolhedoras ao pedestre possuem taxas de acidentes de trânsito inferiores. Ele mostra como a taxa de vítimas é muito maior nos EUA que na Europa. Cita, ainda, que se as taxas dos EUA fossem equiparáveis com a de Nova York, mais de 24 mil vidas seriam poupadas ao ano.
  4. Estresse: Segundo o autor, o uso de carros por longos períodos aumenta os níveis de estresse do motorista. Ele cita ainda pesquisas que mostram uma maior correlação entre ataques cardíacos e uso de automóveis.
  5. Economia: Ao abdicar de carros (o que, nos EUA, muitas vezes significa ter apenas um carro por família), há uma economia significativa. O dinheiro gasto em carros vai, em grande parte, para montadoras localizadas em outros estados e países, além da compra de combustível, geralmente importado. Ao abdicar do carro, este dinheiro passa a ser gasto de forma local, fortalecendo a economia da região.

Como bônus, ainda temos um capítulo mostrando como procuramos ser ecologicamente corretos da forma errada. Um exemplo estarrecedor citado é a mudança de local de uma agência governamental americana. O novo prédio fora construído com novas tecnologias para economizar energia, água, entre outras vantagens. Entretanto, passou a se localizar no subúrbio, em oposição ao centro da cidade. Assim, o resultado ecológico foi muito pior, pois obrigou uma massa de trabalhadores a se deslocar até o local, gastando mais energia e poluindo mais.

Como Chegar Lá


Na segunda parte do livro, cada passo para atingir a meta corresponde a um capítulo. Como ocorre em quase todos os casos de x passos para tingir tal meta, claramente alguns itens foram criados apenas para atingir-se o número 10. Assim, enquanto alguns capítulos são muito interessantes, outros são bastante pobres.

Passo 1: Como Usar um Carro


Este capítulo fala sobre com usar a ferramenta carro de forma mais adequada. Aqui é falado sobre demanda induzida, criação de zonas exclusivas para pedestres e tarifas de congestionamento (pedágio urbano).

A ideia é que, para muitos casos, carros são uteis. Entretanto, seu uso indiscriminado tem criado uma política de construir as cidades para carros ao invés de pedestres, ou seja, para seres humanos.

Passo 2: Zoneamento Misto


Zoneamento misto significa estimular residências e comércio estabelecerem-se na mesma região. Na minha opinião, esta é a abordagem mais importante em um sistema de transporte, pois simplesmente reduz a necessidade de se transportar, já que o morador encontra grande parte de suas necessidades na própria vizinhança. Fiquei bastante decepcionado com a abordagem curta e pouco profunda presente no livro.

Neste livro, a discussão rapidamente se torna um capítulo sobre habitação, pois, no cenário americano, as cidades estão tomadas de comércio, mas com poucas residências. No Brasil, entretanto, o cenário me parece o inverso. Aqui precisamos levar comércio para os bairros residenciais. Assim, as necessidades da realidade brasileira não são abordadas.

Passo 3: Estacionamento


Aqui o autor se baseia no livro The High Cost of Free Parking (comprei e pretendo fazer um review futuramente). Mais uma vez, há um problema que parte do problema abordado remete à realidade americana, diferente da nossa em vários pontos.

O primeiro ponto de discussão é o fato da legislação obrigar a construção de muito mais vagas de estacionamento do que são efetivamente necessárias, aumentando custo dos produtos que consumimos e desperdiçando área urbana. O Brasil sofre um pouco este problema, mas não de forma tão acintosa quanto na realidade americana.

Um segundo ponto abordado trata do estacionamento em ruas. O fato de ser gratuito é apresentado como ruim para o comércio, pois diminui a rotatividade das vagas. Sugere-se que o ponto ótimo de um estacionamento é atingido quando 80% das vagas estão ocupadas, pois garante que não se perca muito tempo procurando por vagas.

Não gosto desta abordagem do problema, pois faz parecer que o estacionamento em ruas é algo que a cidade deva oferecer. este é um espaço caro e julgo que outros usos deveriam ser avaliados, como a ideia de parklets. Infelizmente este ponto não é tratado.

Uma ideia muito interessante, entretanto, é apresentada: o dinheiro arrecadação com o estacionamento deve ser gasto na vizinhança. A ideia me parece bastante razoável, pois é justamente esta vizinhança que está sendo prejudicada pela circulação de carros.

Passo 4: Transporte Público


A ideia principal é que um sistema viável de transporte público requer vizinhanças densas. Colocar linhas de ônibus em locais ermos torna o custo do transporte mais caro do que o uso de carros. Assim, por exemplo, recomenda-se o famoso drive & park, no qual a pessoa dirige até um eixo de transporte e este o leva até seu destino final, localizado em uma zona mais densa.

Ainda é abordado, embora de forma superficial, a ideia do uso bondes, e trem versus ônibus. Uma especial atenção, entretanto, é dada ao sistema zip car, no qual o motorista aluga um carro por um período curto de tempo para uma determinada ação. A ideia não é ruim, mas a paixão com que o autor defende este sistema me pareceu exagerada.


Passo 5: Proteção ao Pedestre


Este é o capítulo mais polêmico. Algumas ideias defendidas por ele são, na minha opinião, um pleno absurdo. Mas vamos ao que é defendido aqui.

Tamanho das quadras e largura das vias são diretamente responsáveis pela segurança no trânsito. A largura das vias aumenta a velocidade das ruas, além de aumentarem a distância que o pedestre deve atravessar. Já quadras menores permitem uma melhor distribuição do tráfego em ruas menores, reduzindo a necessidade de ruas grandes. Não gosto deste argumento, pois ele se contradiz com o argumento da demanda induzida. De toda forma, quadras menores reduzem a distância do percurso, o que é muito apreciado por um pedestre.

Traffic calming é necessário. E o segredo é fazer com que as ruas pareçam mais inseguras, pois reduz a tendência do motorista de acelerar. Algumas ideias incluem a redução de semáforos, pois a negociação necessária em cada esquina reduz velocidades,

Um ponto que recebe destaque é a epidemia das ruas de mão única. Este tipo de organização é muito inseguro, pois estimula o motorista a dirigir rápido (já que não vê outros carros vindo no sentido contrário).  Além disso, elas aumentam a distância necessária a ser percorrida pelos carros, algo ecologicamente negativo. A mensagem é "use com parcimônia" - algo que estamos longe de fazer. Verifiquei recentemente que apenas duas ruas no Bom Fim são de mão dupla.

Por fim, é discutida a necessidade do pedestre se sentir seguro. Aqui vem algo que não faz nenhum sentido para mim - e imagino que para muitos outros. Ele defende que vagas de estacionamento fazem o pedestre se sentir mais seguro, pois há uma parede de carros entre ele e a rua. Mais que isso, que este é um elemento essencial! Assim, segundo o autor, os maiores inimigos para calçadas seguras são ciclovias e linhas de trânsito! Sim, isto mesmo que tu leste! Está lá na página 182! Nunca se deve retirar vagas de estacionamento para colocar uma ciclovia ou linha de ônibus.

Este é um argumento que jamais esperaria ouvir neste livro. Nunca tive problemas com ruas sem estacionamento e posso citar dezenas delas em Porto Alegre onde as pessoas caminham normalmente. Diabos, mais que isso, as pessoas costumam passar a coluna dos carros e caminhar na rua enquanto um momento para travessia não surge!

Entendo que algumas ruas necessitam de espaço de estacionamento na própria rua para estimular o uso do comércio local por não residentes. Contudo, a defesa indiscriminada que o autor faz deste tipo de recurso me parece completamente despropositada.

Passo 6: Bicicletas


Apesar de defender que devemos priorizar estacionamento nas ruas à uma ciclovia, o autor defende que o uso de bicicletas aumenta a segurança do pedestre. Por quê? Pois, ao se acostumar com bicicletas, carros tendem a dirigir com mais prudência. Em suma, é um recurso de traffic calming.

Entretanto, o autor defende que a criação de ciclovias diminui a segurança do ciclista e do pedestre. O motivo? O efeito de traffic calming desaparece e a adição de uma pista extra aumenta a distância que o pedestre necessita transpor ao atravessar a rua. Assim, seu uso seria recomendado em poucos lugares. E nem pense em remover o espaço de estacionamento de carros! Também não coloque a ciclovia entre os carros e a calçada. Por que é inseguro para os ciclistas? Não, porque cria um impedimento entre os carros e as lojas! Sério!

Outra curiosidade: apesar de defender sistemas como o Bike Poa, é categórico ao afirmar que deve ser financiado pelo poder público, pois não tem como dar lucro. A última vez que verifiquei me pareceu que aqui é gerido por uma empresa privada e vai muito bem, obrigado.

Em resumo, o autor mantém a visão americana de que bicicletas são um brinquedo bonito, mas que devemos sempre priorizar os carros. Este é o motor econômico de uma cidade!

Passo 7: Ambiente


Este é um dos capítulos que me parece ter sido escrito para fazer número. A ideia é que as ruas devem ser pequenas e com uma altura média dos prédios que dê ao pedestre a sensação de estar protegido (?!). Os argumentos são fracos e reforçam a ideia de estarem aí para fazer número.

Embora goste de ruas fechadas, ruas amplas podem ser igualmente interessantes. É importante em uma cidade haver uma mescla. A ideia de que o pedestre precisa de uma altura mínima de prédio para se sentir acolhido me parece palpite despretensioso.

Passo 8: Árvores


Aqui temos um compêndio de motivos porque árvores são úteis. Nada de muito novo. O que chama mais a atenção - e mostra como há regiões dos EUA malucas! - é o fato do estado da Virgínia se referir a árvores, em seus manuais de trânsito, como "objetos fixos e de risco".

De resto, tudo que já sabemos sobre árvores:

  • São uma medida de traffic calming;
  • Aumentam a segurança do pedestre;
  • Reduzem a temperatura da cidade;
  • Ajudam a combater alagamentos;
  • Reduzem a poluição.

Passo 9: Ter o que Ver


Embora seja um assunto relativamente bastante discutido, temos aqui algumas ideias interessantes. A ideia é criar uma cidade bonita e com lugares interessantes, que justifiquem uma caminhada. Afinal, nós saímos de casa por algum motivo!

Algumas ideias apresentadas são:

  • Criar estacionamentos que não se pareçam com estacionamentos. Ao romper com o código visual padrão, tornamos estacionamentos - algo geralmente feio - em algo invisível;
  • Prédios devem ter uma fachada "porosa", isto é, permitir que se veja o que há dentro deles. Isto pode ser atingido através de vitrines ou entradas amplas. 
  • As ruas devem ter variedade, ou seja, não parecerem demasiadamente homogêneas.
  • Aqui mais uma polêmica: espaços verdes são necessários, mas entediantes quando comparados com vitrines e vendedores de rua. Achei um comentário forte, mas até pode ser verdade para a maioria das pessoas mesmo.

Passo 10: Escolha no Que Investir


A ideia aqui é que não se deve pensar em resolver o problema em todos os cantos da cidade. Além de custoso, nem todas as áreas são adequadas para isso. Algumas são mais favoráveis ao tráfego de carros, por exemplo. Talvez até possam ser alteradas, mas envolveria uma remodelação até mesmo do comércio local. O ideal é começar o projeto em áreas centrais e, a partir delas, expandir o projeto.

Um ponto interessante que, assim como shopping centers, comunidades precisam de âncoras. Estas âncoras podem ser ruas já movimentadas (de pedestres), lojas, bares, cinemas, etc. O importante é possuir um local que atraia pessoas.

Visão Geral


Minha maior frustração com o livro foram as referências. dado que o autor é um palestrante e profissional da área, me incomoda muito o fato de todas as referências serem feitas a trabalhos não científicos. Nenhuma única publicação com peer review é citada! Assim, não me sinto seguro em acreditar em nenhuma das afirmações que ele diz estar embasada em estudos.

Como um cético - e como amigo de tantos outros céticos - este fato é inaceitável. Se eu entrar em uma discussão defendendo minha posição com estudos tão pobres serei rapidamente desacreditado! Minha esperança de mostrar que este ponto de vista é o estado da arte científico em urbanismo não pode ser provado. O jeito é procurar dados diretamente em publicações da área.

Outro ponto que me incomodou muito: a raiva do autor contra engenheiros! Embora ela pareça se justificar pelo fato de engenheiros de trânsito defenderem um cenário urbanístico diferente do dele, também é verdade que a maioria dos arquitetos defende a mesma coisa. Há uma diferença, entretanto: engenheiros são criaturas de exatas. Eles querem números!

Assim, a impressão que fia é que o autor não consegue convencer muitos profissionais da área, pois simplesmente não tem a mão estudos sérios sobre o tema. Ele até pode ter razão - e acredito que tenha -, mas defende os dados mais por ideologia do que por estudo.

Apesar destes problemas,o livro é bastante interessante como manifesto, apresentando a filosofia por trás de uma ova proposta de urbanismo. Neste ponto o autor é, em geral, bastante feliz. A narrativa é vibrante e apaixonada, logo, propícia para evangelistas. Infelizmente, minha estratégia de convencimento é diferente.

Mesmo que sejas um cético, ainda assim recomendo a leitura deste livro - ao menos até achar um livro mais bem fundamentado sobre o tema. Ele é rico em exemplos e, posteriormente, podemos ir atrás de fontes mais fidedignas para confirmar ou derrubar as afirmações feitas. Apenas se prepare mentalmente para tentar visualizar léguas, milhas, jardas, acres e afins. é inacreditável que os EUA ainda usem o sistema imperial!

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